Crítica: Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo (2022), de Daniel Kwan & Daniel Scheinert
Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo (2022) é um filme que já nasceu clássico.
Quando foi a última vez que você viu um filme tão singularmente revigorante? Se você perguntar para aqueles mais saudosistas e puritanos, talvez a resposta seja que nenhum filme foi tão criativo quanto Cidadão Kane (1941) e que nenhuma outra história foi tão densa quanto de O Poderoso Chefão (1972). Se você falar com o pessoal que ainda fuma cigarros e se veste como se fossem poetas dos anos 1960, a única resposta plausível é Acossado (1960) — ou, na verdade, qualquer outra coisa de Godard. E sua lista, provavelmente, não pararia de crescer: para os amantes de cinema experimental ou noir, Cidade dos Sonhos (2001) é a peça mais genial já lançada, enquanto Cidade de Deus (2002) é a jogada certa caso você esteja se sentindo um pouco mais brasileiro. Lançado há pouco mais de dois anos, Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo é como um desses trabalhos importantes da história do cinema: um filme que nasceu clássico e que carrega, em sua substância, uma aula metalinguística de como fazer cinema em tempos em que essa arte perde cada vez mais seu espaço de espetáculo.
Na obra, seguimos Evelyn Wang (Michelle Yeoh), uma imigrante chinesa sobrecarregada que está à beira de um evidente colapso: enquanto tenta manter sua lavanderia decadente funcionando, Evelyn tem de lidar com seu casamento em ruínas e manter uma relação conturbada com seu pai crítico e sua filha, Joy (Stephanie Hsu). Em uma reunião desagradável com uma auditora da Receita Federal, Deirdre (Jamie Lee Curtis), uma inexplicável fenda no multiverso se abre e uma versão alternativa de seu marido, Waymond (Ke Huy Quan), demanda que Evelyn salve todos das mãos de Jobu Tupaki. Contra sua vontade, a mulher é arrastada para uma aventura para impedir que Tupaki destrua as finas e incontáveis camadas de universos paralelos. Conectando-se a outros mundos e com outras vidas que poderia ter vivido, Evelyn tem que lutar não só pela sua existência, mas também para não se perder de si própria.
Um dos segredos que fazem Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo especial é seu trabalho em cima da virtualidade. Segundo Gilles Deleuze, a virtualidade é um pedaço da realidade que é um ideal não material, ou seja, um elemento que não se opõe ao real, mas que é contrário de uma existência factual e concreta. Fora de termos pretensiosos, isso significa que o filme brinca com uma noção em que a tal realidade atravessa seu significado mais lógico e tradicional — de que para algo ser real, ele tem que existir no campo material. Essa percepção não ordinária é refletida por duas instâncias. Em primeiro, pela trama principal de universo paralelos e pela forma que eles se conectam — afinal, enquanto você existe no seu mundo, sua mente se transpassa para outra realidade e consegue captar toda a história e as habilidades do seu outro eu. Em um segundo momento, pela idealização metafórica de ordem diegética, em que imagens de espelhos refletem um instante do seu passado — instante esse que pode ser o presente em outro lugar —, e pela mise-en-scène, em que portas de máquinas de lavar parecem possíveis portais interdimensionais. O sentimento final é de um filme de ficção científica em que a ciência não parece ser orquestrada tanto pela lógica, mas sim pela fantasia do destino.
Essa virtualidade, por sua vez, impõe uma fragmentação da personagem em um sentido duplo. Evelyn, desde os primeiros instantes, apresenta um fracionamento da sua personagem: ela é uma mãe liberal que aceita que sua filha namore uma menina, mas ainda não se sente segura para falar com seu pai conservador sobre isso. No meio tempo, Wang constantemente se perde entre os dois idiomas que fala e grande parte de seus problemas com seu marido partem de uma natureza de um erro de comunicação. Porém, quando ela começa a lidar com o múltiplo de realidades e sua mente começa a ir e vir entre suas diferentes versões — ou, como o filme prefere, “rachar o vaso” —, o que vemos é a sedimentação dessa fragmentação que sempre existiu. Há um momento em que Waymond Alpha, seu marido de outro universo, diz que ela é a Evelyn perfeita porque ela é ruim em tudo que faz: Wang teve que fracassar para que todas as outras versões fossem bem-sucedidas em alguma coisa. Sua eminente e metafórica quebra mental, nesse sentido, é muito mais uma catarse e uma reconexão consigo mesma do que uma nova deturpação.
Todavia, isso tudo só funciona porque a cinematografia e a direção do filme são igualmente ousadas. Daniel Kwan e Daniel Scheinert nunca fizeram um trabalho tão refinado e sagaz como esse — o que, honestamente, me faz pensar se todas as escolhas certeiras foram apenas uma jogada de sorte. Sua abordagem é sufocante e frenética, representando os dois momentos de Evelyn — tanto seu sobrecarrego inicial quanto suas quebras emocionais de noção na virtualidade —, funciona muito bem. No entanto, esse ambiente frenético não segue as linhas mais óbvias: o ritmo acelerado não é construído por meio da montagem de planos curtos e cortes secos, mas sim pelos movimentos de câmera, que são bruscos e velozes, causando uma distorção na percepção de espaço e, consequentemente, um desconforto. Em paralelo, as cenas de lutas são bem imaginativas e divertidas, ao passo que os efeitos de tela dividida contribuem, em essência, para o estilo e objetivo da obra. Essa combinação cria um filme que, embora dialogue com elementos mais contemporâneos para dialogar com um público que é constantemente super estimulado, não perde a reputação de um grande evento.
Como resultado, Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo é uma produção intermidiática sólida, que adapta muito bem uma linguagem de internet sem perder seu posto de uma peça mais refinada e bem trabalhada. Como alguns gostam de chamar, esse é um ótimo filme TikTok — perceba que eu não disse “para o TikTok”. Nessa adaptação, ele também moderniza, de certa forma, a jornada do herói, mantendo seu núcleo, mas seguindo caminhos mais originais. Nisso, também, o longa consegue trabalhar o multiverso sem se render ao padrão Marvel e ainda apresenta um humor genuinamente divertido: para realizar a conexão com as suas outras versões, você precisa fazer algo improvável no momento — e é aí que está todo fator cômico, bem como em cada variação da realidade. Para mais, o arsenal de referências é denso e a vilã da história, Jobu Tupaki, uma versão paralela de Joy, é a heroína de toda uma geração do Twitter. Como resultado, o filme é original, mas fortemente popular.
Embora seja inútil eu tentar explicar todo fio narrativo que se desenrolar em Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo, a sua moral é mais simples do que parece. Toda essa fragmentação e noção de virtualidade fundida com uma visão contemporânea apenas representa uma quebra psíquica de Evelyn, uma imigrante chinesa de meia-idade que luta para sobreviver, enquanto tenta segurar todas as pontas da sua vida para manter em pé o que lhe resta. Nisso, esse filme não é tanto sobre entender, mas sim aproveitar. O que fica é que nada importa, já que, embora sejamos uma bagunça, todos temos também algo amável. Talvez, o melhor que possamos ser seja a pior versão de nós mesmos — e há algo de especial nisso.