Crítica: O Menino e a Garça (2023), de Hayao Miyazaki
Fortemente sustentado por séculos do folclore japonês, O Menino e a Garça (2023) é um novo clássico que impulsiona as barreiras do passado.
Na cultura japonesa, a figura da garça é vista como um dos seres animalescos mais imponentes e fascinantes. Nesse folclore, o animal representa o mistério e o ocultismo, além de possuir uma forte ligação com espíritos, deuses, morte e, até mesmo, outros mundos. Por quase dois mil anos, a literatura do Japão se debruçou nesse imaginário: desde a década de 700, a garça já se popularizava como uma forma objetiva de metamorfose das narrativas heroicas. Em Kojiki, por exemplo, um jovem príncipe morre e é transformado numa garça-branca, capaz, física e metaforicamente, de atravessar entre os três elementos: água, terra e ar. Bebendo fortemente dessa cultura, O Menino e a Garça (2023) é um novo clássico que rompe as barreiras do passado, mas abraça a tradicionalidade.
No filme — dito o último do diretor Hayao Miyazaki, que assinou grande parte dos clássicos do estúdio Ghibli, como Meu Amigo Totoro (1988), A Viagem de Chihiro (2001) e O Castelo Animado (2004) —, acompanhamos Mahito, um menino de 12 anos, que tenta sobreviver em meio a um Japão em ruínas durante a Guerra do Pacífico. Depois da morte de sua mãe, o jovem luta para se estabelecer em uma nova cidade ao lado de Natsuko, irmã de sua mãe e nova companheira de seu pai, Shoichi. Quando uma garça falante conta para Mahito que sua mãe ainda está viva, ele entra em uma torre abandonada em busca dela, o que o leva para outro mundo e faz o jovem entender sua própria história.
O grande chamariz de O Menino e a Garça é seu remonte ao tradicionalismo temático e estilístico responsável não apenas pela cristalização de Miyazaki como diretor, mas também pelo posicionamento do estúdio como um ponto de referência em animação. Nesse sentido, a narrativa do filme segue um padrão de estrutura e motes que lembra seus similares: nosso herói é um jovem destemido que tenta encontrar seu lugar em um mundo caótico e que é arrastado, porventura, para uma missão em um mundo alternativo. Neste outro universo, acessado por um túnel abandonado ou vegetal — como em Meu Amigo Totoro e A Viagem de Chihiro —, as noções de fronteiras entre realidade e fantasia se perdem ao passo que toda fauna e flora se mesclam com os humanos e todas suas concepções mórficas perdem sentido em prol de algo mais engenhoso — o homem pássaro vestido de garça rememora Princesa Mononoke (1997).
Porém, por mais similares e comum que sejam os elementos e motivos de O Menino e a Garça, sua habitualidade ainda brilha devido à sua importância e recorrência. O filme evoca a memória dolorosa de um país que sofreu tanto durante a Segunda Guerra, bem como busca honrar sua ancestralidade para além do acervo cinematográfico. Ou seja, além de seguir o padrão do estúdio, o filme bebe de um passado ainda mais longe para funcionar também como um cristalizador de cultura. Nesse sentido, a lista de referências ao folclore japonês é densa e isso é refletido na construção imagética de O Menino: conforme os personagens adentram cada vez mais no universo paralelo, mais rico e singular ele parece. Diferente de apenas introduzir animais com formas engraçadas, há um capricho em cada detalhe: os pelicanos foram arrastados para esse novo universo e têm que comer pequenas criaturas voadoras, que, quando finalmente amadurecem, transformam-se em humanos. De alguma forma, tudo ali parece magicamente bem calculado e tem o propósito de apenas vislumbrar visualmente, assumindo a performance de um espaço limiar.
Em paralelo, O Menino e a Garça traça seu caminho também com originalidade. Claro, sua proposta que segue um caminho seguro é sólida e bem-feita, mas são seus instantes ousados que o transformam em um novo clássico que vai além do que já foi apresentado até aqui pelo estúdio. Por exemplo, há uma leve paquera com a ficção científica, ao passo que a torre que o bisavô de Mahito construiu, na verdade, caiu do céu em forma de meteoro, e há um flerte com viagem no tempo: Himi, uma guerreira de fogo do mundo alternativo, é a versão mais nova da mãe de Mahito vinda do passado, enquanto Natsuko torna-se a figura materna do futuro. Aqueles que conhecem bem o acervo de Ghibli sabem que não é a primeira vez que isso ocorre em um filme deles, mas, talvez, essa é a vez que isso acontece de forma mais sólida e impressionante. Como consequência, O Menino está longe de ser uma obra para crianças, ainda que sua moral simples — construir um mundo melhor — seja mais que funcional e genuinamente bem-intencionada.
O legado, porém, não está concentrado tanto na temática, estilo e bagagem quanto está na parte visual e técnica do filme. Fazendo a manutenção do estilo 2D em meio a um monopólio de animações 3D, O Menino e a Garça parece uma obra totalmente atemporal. Para quem não sabe, o cinema de animação 2D do Japão é um dos mais tradicionais do mundo: mesmo com todas as tecnologias, os filmes ainda são feitos como no passado, desenhando e pintando quadro a quadro. O resultado pode não ser tão preciso e realista quanto os últimos lançamentos de Pixar e DreamWorks, todavia, é definitivamente mais bonito. Além dos momentos que impressionam por sua complexidade — cena em que Mahito corre em meio a cidade em chamas —, cada segundo do longa é como uma pintura: a qualquer instante que você o pausar, irá ver uma pintura de um livro infantil que vem sendo uma referência há cerca de 400 anos.
O Menino e a Garça tem mais de duas horas de duração, mas, para ser sincero, sua imensidão faz parecer algo mais longo: pela quantidade (e qualidade) de tudo que o filme propõe e desenvolve, os norte-americanos, com sua tendência mais pedagógica e lenta, demorariam quase o dobro de tempo. O que, talvez, facilita para os japoneses é ter uma visão clara de suas morais e a importância delas acima de qualquer concepção de mercado. Isso faz o ritmo do filme ser próprio — talvez a preparação do herói na primeira hora seja um pouco enrolada, mas nunca desnecessária. No final do longa, a garça diz para Mahito que logo ele iria esquecer do que havia acontecido ali. Essa é uma realidade para todos nós quando crescemos, mas são filmes como esses que queremos ver quando queremos lembrar que ainda há possibilidade de magia no mundo.