Crítica: Moonlight: Sob a luz do luar (2016), de Barry Jenkins
Em Moonlight: Sob a luz do luar (2016), os clichês são subvertidos ao passo que negritude, masculinidade e vulnerabilidade se chocam em uma retratação dolorosa da tentativa de autoconhecimento.
No começo do século XIX, um movimento teatral chamado Minstrel Show se tornou extremamente popular nos Estados Unidos. Nesse, atores brancos faziam o uso de blackface e disseminavam os ideais racistas borbulhantes do pré-Guerra de Secessão. Durante mais de cem anos, essa foi uma prática comum: quando o cinema chegou no final dos anos 1800, o blackface passou a ser usual entre os filmes. Na década de 1930, com a crescente rejeição do público ao ato racista, o blackface entrou, finalmente, em queda. Por outro lado, os estereótipos de pessoas negras se manteve: os homens eram sempre associados ao mundo do crime e violência, enquanto mulheres eram postas como jezebéis sexualmente vorazes. Em Moonlight: Sob a luz do luar, os clichês são subvertidos ao passo que negritude, masculinidade e vulnerabilidade se chocam em uma retratação dolorosa da tentativa de autoconhecimento em meio a um ambiente que persiste apesar de sua marginalidade.
Dirigido e escrito por Barry Jenkins, Moonlight se debruça no relato de três fases da vida do retraído Chiron: quando menino, Little (Alex R. Hibbert); na adolescência, como Chiron (Ashton Sanders); e na vida adulta, Black (Trevante Rhodes). O caminho é um diário do processo de amadurecimento e autoconhecimento do rapaz em meio à criminalidade de uma decadente Miami. Enfrentando a ausência de um pai, os entraves de ter uma mãe viciada em crack (Naomie Harris) e os empasses de aceitar sua própria sexualidade, Chiron tenta descobrir maneiras não apenas de sobreviver e de melhorar de vida, mas de se tornar a versão mais sincera de si próprio.
Um dos grandes êxitos de Moonlight é a desobediência dos arquétipos do cinema, resultante da troca de lente que vislumbra sobre a narrativa. Ou seja, no final, embora tenhamos uma ambientação convencional de uma comunidade marginalizada numa situação decadente generalizada, o formato pelo qual isso é abordado deixa de lado as facetas tradicionalistas melodramáticas de construção de redenção. Esse passo é dado em prol de uma realidade mais palatável, focada em transmitir sentimentalismo pela veracidade e não tanto pela comoção. Jenkins faz isso com maestria por meio de sua câmera que circunda muito bem seus instantes de análise: perto do começo do filme, quando Juan (Mahershala Ali) chega em um dos pontos de venda de droga, a câmera não hesita em rodar a situação diversas vezes, pondo o momento em vulnerabilidade. Em paralelo, a câmera quase sempre é inquieta, configurando ainda mais uma intimidade. Porém, essa intimidade nem sempre mostra algo bonito, mas esse não é muito o seu papel de qualquer forma.
Toda essa subversão do clichê vem justamente para quebrar com o esteriótipo cinematográfico hollywoodiano de homens negros como, banalmente, pessoas do crime. Claro, em Moonlight, Juan e a versão adulta de Chiron são traficantes de drogas, mas isso não é uma realidade por um casual desvio de caráter pautado numa meritocracia fantasiosa estadunidense. Na verdade, em ambos os cenários, o tráfico foi visto como uma única solução: enquanto Chiron precisa sobreviver após sair da penitenciária, onde ficou depois de ser condenado por agredir um valentão do colégio, Juan nunca se orgulha de sua carreira. O foco não é pintar essas pessoas como boas ou ruins, mas, sim, atentar às razões — agora, sim, boas ou ruins, diretas ou indiretas — que as fizeram ser quem são. O exercício de construção de Jenkins da retratação dessa pequena comunidade negra em Miami é um reflexo global: “Há negros em todos os lugares. Lembre-se disso, ok?”, Juan diz, significando muito mais do que a presença, mas suas dificuldades também.
Em paralelo, o foco em personagens masculinos bota em jogo uma questão de masculinidade. Observar Juan e, posteriormente, Chiron adulto, traz uma impressão do clássico “cara durão sem sentimentos”. Moonlight, por outro lado, carrega complexidade: quando Little pergunta para Juan o que era ser boiola, o traficante responde com carinho e acolhimento. Uma década mais tarde, quando Black reencontra com seu primeiro amor, Kevin (André Holland), sua face de homem forte “cai”: não era de se esperar que um dos melhores traficantes da cidade ainda fosse apaixonado pelo seu colega de sala e, muito menos, que ele nunca tenha ficado com mais ninguém. Porém, por mais interessantes — e parecidos — que Juan e Chiron sejam, sua relação é que leva todo o brilho. Minha cena favorita fica ainda no começo, quando o rapaz leva o menino para o mar e o ensina a nadar. O símbolo da água em Moonlight é forte, mas nessa cena é mais forte ainda: tudo ali parece copiar um batismo, com menino e “pai” fechando um trato de lealdade entre suas moralidades. Nesse instante, Juan torna-se um pai, um padre e um Jesus para Chiron — três figuras que o garoto nunca teve.
Toda essa ótica do filme põe em jogo o estereótipo de figuras masculinas negras ao quebrar com sua dureza, como disse, mas também ao construir vulnerabilidade. Comentei agora há pouco sobre Kevin, amigo de infância de Little e que, na adolescência, torna-se sua primeira e única experiência sexual. O interessante, porém, encontra-se na vida adulta, quando Chiron se abre para Kevin nos últimos cinco minutos do longa, comentando sobre sua fidelidade não intencional à relação inexistente dos dois. O ponto é que “sair do armário” na adolescência, por exemplo, intensificaria o bullying, mas, querendo ou não, ainda faria parte de um processo de construção de identidade. No caso da vida adulta, desistir de uma carreira que depende, exclusivamente, de um tradicionalismo patriarcal para seguir seu verdadeiro eu e começar de novo — se é que ele conseguiria — é mais arriscado. Sua vulnerabilidade com Kevin surge em dar para ele, novamente, sua kriptonita e, consequentemente, declarar seu amor.
Independentemente da fase de sua vida, Chiron sempre foi calado, contido e tentou passar despercebido. De fato, isso é um resultado não apenas da pressão que sofreu na escola, mas também em casa, com sua mãe drogada que usa de chantagem emocional para sustentar seu vício. Para mais, Juan, que tinha se tornado uma espécie de Jesus, mostra-se como Judas metafórico, quando assume ser o traficante responsável pelo ponto de vendas que a mãe de Chiron frequenta. Porém, o processo do herói de deixar de ser a vítima das drogas para ser alguém que domina esse comércio é um triunfo simbólico, não por mostrar uma superação, mas, sim, a possibilidade de salvação de sua mãe. Tudo isso culmina numa autodescoberta, sustentada também pela única cena em que Kevin esmurra o rosto de Chiron apenas para se provar para os demais garotos da escola. No instante, Chiron levanta seu rosto todas as vezes, apenas escancarando a traição do amigo, mas também sua resiliência interna, liberta de qualquer amarra clichê.
Desde a incrível abertura sonorizada por uma música de Kendrick Lamar até a memorável cena final que dá nome ao filme — uma história da infância de Juan, na qual sua avó afirma que a pele negra, na luz do luar, brilha em tons de azul —, Moonlight tem muito pano para manga. O que escrevi até aqui foi apenas uma breve análise do ótimo ensaio de personagens de Jenkins, mas ainda há muito, muito que pode ser dito. No final, depois de Black se declarar para Kevin, o filme opta, novamente, pela quebra do melodrama: não há cenas de sexo ou beijos, apenas Chiron repousando sua cabeça no ombro do seu amigo de longa data. Pela primeira vez, mesmo que apenas por alguns segundos, ele se sentiu seguro sendo ele mesmo.