Crítica: Guerra Civil (2024), de Alex Garland
Guerra Civil (2024) assume novas perspectivas em uma história já contada, mas seu condicionamento às convenções saturadas acaba com todo brilho.
Se você der uma olhada na história dos filmes de guerra norte-americanos, vai perceber um padrão de protagonismo. Nossos heróis, quase sempre, são os típicos trabalhadores pobres ou os filhos de uma pequena burguesia local, que sofrem um choque de realidade quando têm que deixar sua vida pacata nos subúrbios para trás em prol da luta por seu país. Todos já conhecemos essa história: um soldado, quase um símbolo de working-class-hero, que passa por uma intensa prova de lealdade e fraternidade e recai num final melodramático ou vitorioso. Por outro lado, há uma história que raramente é lembrada, mas igualmente importante: os repórteres e fotógrafos de guerra. Responsáveis pelos registros e documentos mais fundamentais, esses profissionais assumem posições de frente de guerra, colocando suas vidas em risco em troca de apenas uma captura que pudesse sumarizar todo um evento. Guerra Civil (2024) tenta assumir esse ponto de vista e fazer justiça a ele, mas acaba ficando muito preso em amarras do passado.
Assinado por Alex Garland, Guerra Civil é ambientado em um futuro não tão distante, quando uma guerra civil se instaura nos Estados Unidos entre o governo e as Forças Ocidentais Separatistas, lideradas pelos estados do Texas e Califórnia. Neste cenário, uma equipe pioneira de fotojornalistas de guerra, composta por Lee (Kirsten Dunst) e seu colega de trabalho Joel (Wagner Moura), viaja pelo país para registrar a dimensão do conflito em sua rápida escalada. Interessados em serem os últimos a entrevistar o presidente — cuja queda é considerada iminente —, a dupla, ao lado da jovem protegida Jessie (Cailee Spaeny) e do velho amigo Sammy (Stephen McKinley Henderson), parte em uma viagem à capital. Todavia, o trabalho do quarteto se transforma em uma missão de vida ou morte quando eles também se tornam alvo.
Por mais bem intencionadas que sejam as motivações por trás da adoção do ponto de vista de Guerra Civil, acaba sendo um pouco difícil comprar essa ideia. O maior problema da suposta distopia é a carência de uma melhor arquitetura em torno da sua própria existência. Em outras palavras, essa diegese passa uma sensação de algo que não foi propriamente pensado, mas apenas vislumbrado em sua superfície. Como consequência, você passa mais tempo se perguntando como aquele universo funciona do que se interessando pela narrativa dos personagens: o quão colapsado está esse mundo? E por que ele parece estar andando numa linha tênue entre The Walking Dead e um filme de Christopher Nolan? Na realidade, até o próprio longa parece se perder nessas questões, visto que, com o tempo, ele parece abandonar as próprias regras que estabelece no início — afinal, os jornalistas são odiados ou não?
Porém, isso não significa que Guerra Civil seja desinteressante. Mais do que um filme sobre um país decadente, onde um sanduíche custa trezentos dólares, a obra se sustenta pelos núcleos intimistas. Claro, em alguns filmes de guerra, a atenção sempre recai em cima de um soldado que, a princípio, não tem muita relevância em uma grande escala. No caso de Guerra, o foco é um grupo ainda mais esquecido, mas o trabalho aplicado consegue ser mais sólido. Para além de diálogos bem-feitos, existe uma relação duramente acolhedora entre eles: Lee é contra Jessie embarcar na viagem à capital porque acredita que é uma barra muito pesada para a jovem segurar, ao passo que Joel sofre cada segundo do pós-morte de Sammy. Não vou negar que senti uma fraqueza no final, quando Jessie não parece sentir culpa por ter sido, indiretamente, responsável pelo falecimento do companheiro de viagem. Ou ainda, um desenvolvimento brusco na chegada do trio em Washington, quando Lee e Jessie parecem trocar de posição: enquanto a primeira assume um posto de retaguarda com medo, a segunda é mais corajosa e focada no trabalho.
Porém, se a história tem seus momentos ousados que acabam perdendo força pela instabilidade e falta de confiança no próprio universo, a direção cai na mesma cilada. Se por um lado, Alex Garland assume novas estratégias e abordagens, por outro, ele não parece se sentir seguro para adotá-las em sua totalidade. Um exemplo é a ausência do ponto de vista das câmeras dos jornalistas: no começo, quando eles estão filmando ou tirando fotos, são muito raros os instantes que vemos esse material. Particularmente falando, essa é uma abordagem interessante, visto que nosso objeto de estudos são as pessoas que estão por trás da câmera e não o que acaba sendo registrado. Com o andar do filme, porém, o diretor insere cada vez mais e mais as supostas imagens de arquivo, que, obviamente, têm seu brilho, mas não são a melhor alternativa.
Apesar disso, Guerra Civil não deixa de ser um filme visceralmente violento e impactante. São diversos os momentos em que a violência das batalhas é capturada sem muita preocupação: um homem é queimado vivo dentro de um pneu de carro; outro rapaz leva um tiro no meio da cabeça, ao passo que uma família tem uma coleção de pessoas penduradas porque eles não conseguem decidir o que fazer com seus prisioneiros, então seguem apenas os torturando. Porém, embora meramente chocante, o longa perde tato: quando as imagens de arquivo se fazem mais presentes, elas dão uma tonalidade mais poética, o que acaba tirando o pouco de ação que a obra tinha. O ritmo, por fim, é contaminado também, torna-se lento e maçante depois da primeira hora. De fato, o sentimento é mais que claro: um filme que perde todos os seus elementos favoráveis quando deixa de confiar em si próprio.
No final do filme, Lee é baleada após salvar Jessie: a jovem se jogou no meio de um corredor na Casa Branca e, antes que levasse um tiro dos militares, a fotógrafa veterana conseguiu se atirar na frente dela. Enquanto Lee caía no chão, Jessie, deitada na sua frente, foi capaz de tirar inúmeras fotos da sua suposta ídola. Com isso, a moça assume um papel apático, em que seu trabalho e registro da história são superiores a qualquer relação humana em que esteja envolvida. Embora verdade, o caminho para isso é fraco, sendo o melhor representativo para Guerra Civil como um todo: uma obra com ótimas ideias, mas que, por falta de confiança, acaba recaindo em um padrão que retira todo seu potencial.