Crítica: Godzilla Minus One (2023), de Takashi Yamazaki
Godzilla Minus One (2023) tem todos os tributos para ser canonizada.
O Godzilla é um dos elementos mais emblemáticos da cultura pop japonesa. Da mesma forma que todo o arsenal artístico do Japão, sua criação está enraizada na tradição do país, servindo como um reflexo do percurso da história de seu povo e, em grande parte, da conturbada relação guerrilheira com os Estados Unidos. Desde o primeiro filme homônimo, lançado em 1954, Godzilla foi posto como um símbolo dos ataques com armas nucleares norte-americanas. Para mais, esse é um personagem inerentemente japonês, visto que sua existência está fortemente presa ao imaginário popular japonês e suas representações fora do circuito de produção nipônico são sem brilho. Nesse sentido, Godzilla Minus One (2023) é mais uma prova que apenas os japoneses conhecem suas próprias tradições.
Dirigido e roteirizado por Takashi Yamazaki, Godzilla Minus One se passa em um Japão social e economicamente devastado após a Segunda Guerra Mundial. O anti-herói, Kōichi Shikishima (Ryunosuke Kamiki), é um ex-piloto kamikaze que carrega nas costas uma grande culpa: depois de fingir que seu avião estava com problema e se refugiar na Ilha Odo, ele presencia o primeiro ataque de Gojira. Tendo a oportunidade de lutar contra o monstro com a arma de seu avião, o jovem prefere não atacar para se proteger e acaba deixando com que um grupo de mecânicos seja dilacerado pela criatura. Voltando a Tóquio, ele tenta reconstruir sua vida ao lado de Noriko (Minami Hamabe) e sua filha adotiva, após oferecer abrigo às duas. Todavia, quando o monstro volta para destruir sua cidade e Shikishima acredita que sua companheira foi morta, o rapaz se prontifica para acabar com Godzilla em uma missão heroica.
Godzilla Minus One sustenta seu êxito por se apoiar quase que inteiramente na tradição japonesa. Em 2024, faz setenta anos do lançamento do primeiro filme do grande monstro. Para celebrar, Minus One foi feita para ser a leitura mais convencional de Godzilla dos últimos anos — e há aqueles que argumentam que é a mais tradicionalista desde a dos anos 1950. Além de ser produzido pela mesma empresa que assinou o longa original, Toho, essa nova obra segue uma receita segura, porém mais do que funcional: um enredo que mistura terror com um melodrama clássico que capta bem a ansiedade e militância do sentimento anti-guerra. Seu fluxo segue um arquétipo de ameaça, destruição, plano de contenção e vitória — ainda que o último plano do filme sempre coloque este último estágio em um ponto aberto —, bebendo diretamente do clássico de 1954.
Esse tradicionalismo estético-moral se expande para duas esferas principais de Minus One. Em primeiro lugar, referente às motivações que engajam na narrativa. O verdadeiro antagonista principal do filme é a culpa que consome o protagonista e não necessariamente a grande criatura propriamente dita. No cinema japonês, principalmente nos jidaigeki — gênero que retrata temas antigos da história—, a honra sempre foi uma questão principal. Como exemplo, os inúmeros filmes de samurais que tinham como a questão da honra seu principal motor — vide Os sete samurais (1954). No caso, Gojira acaba sendo uma resolução catártica para Shikishima: sua culpa por não ter tentado matar o monstro na ilha, o que acarretou a morte do grupo de mecânicos, a destruição da cidade de Ginza, e a morte de Noriko, fazendo com que ele veja a morte de Godzilla como uma redenção para si próprio.
Em paralelo, Minus One consegue desenvolver uma história de um pequeno núcleo de personagem que é igualmente recompensadora. Diferente das adaptações norte-americanas, como as de 1998 e de 2014, em que o melodrama é excessivo — por traçar essa linha de uma família em que todas suas motivações são rasas e colocam relações de sangue acima do interesse coletivo —, Minus One é mais delicado e cuidadoso. Claro, há uma espécie de família aqui: Shikishima deu abrigo a Noriko e sua filha adotiva Akiko (Sae Nagatani) e, embora eles não sejam um casal oficializado, o carinho mútuo é mais que suficiente. Porém, a forma que Shikishima usa sua vontade de recuperar a honra e a tristeza pela suposta morte de Noriko como motor para seu heroísmo é mais profundo: enquanto os rapazes dos filmes americanos pareciam sempre querer salvar o planeta para protegerem suas famílias, Kōichi parece saber unir bem seu lado de vingança e redenção pessoal com as necessidades de uma nação que segue passando por episódios de prova de sua força.
Esse afastamento do monstro que o filme dá nos seus quarenta e poucos primeiros minutos, além de posicionar os personagens, funciona como um contexto da época. Godzilla (1954) trouxe como legado sua militância simbólica em forma de uma fantasia, ao passo que as roupagens estadunidenses retiraram esse plano de fundo. Minus One, por sua vez, remonta esse contexto: essa é uma sociedade traumatizada pela guerra, devastada pelo sentimento de inutilidade — o qual é sentido também devido às inúmeras tragédias naturais que acometem o país. Depois do ataque a Ginza, no qual Noriko supostamente morre, uma chuva preta cai sobre a cidade, da mesma forma que aconteceu quando as bombas caíram em Fukushima e Nagasaki. A trilha sonora, emulando os sons das músicas de meados do século passado, escancara a sensação de uma história triste — mas não mais que a realidade.
Por fim, toda parte visual de Minus One é um espetáculo e se aproxima da versão original quando consideramos seu legado técnico: tudo aqui é extraordinário. Se no longa lançado pelos Estados Unidos em 2014, os duzentos milhões de dólares serviram para criar uma criatura que raramente aparecia, nesse novo filme o orçamento é mais enxuto e faz um uso mais interessante da figura emblemática do monstro. O diretor, Yamazaki tem um passado direto com produção de animações e uma carreira dentro da área de VFX e isso é refletido na forma que toda a parte de decupagem se orienta para abraçar o gigante digital. Há uma cena em que Gojira se aproxima de um dos barcos, apenas com seus olhos e o topo da cabeça para fora da água. O sentimento é de terror e medo, mas não minto que ele também parece um pouco simpático. Em suma, o kaiju é mostrado na medida suficiente e, em todas as vezes que aparece, impressiona.
Entretanto, acima de tudo, Minus One é um filme de proximidade: seu enredo é próximo à história do Japão, mantendo seus legados. Para mais, é uma produção de cautela, feita por pessoas que realmente sabem o que aquilo significa para além do que efeitos especiais podem causar. O produto é uma obra completa, que tem todos os tributos para ser canonizada.