Crítica: Dias perfeitos (2023), de Wim Wenders
Dias perfeitos (2023) vislumbra encontrar perfeição naquilo que está ao seu alcance.
“Perfect Days” é uma canção de Lou Reed, que, em um primeiro momento, demonstra uma máxima de enxergar a beleza na simplicidade da vida. No entanto, conhecendo um pouco mais sobre a trajetória do cantor, torna-se mais fácil compreender a faixa como um relato da experiência de um usuário de heroína. Quando ele canta, “Oh, it's such a perfect day / I'm glad I spent it with you”, sua companheira é, na realidade, a substância química. Dias perfeitos (2023), de Wim Wenders, abandona as entrelinhas da música e adota uma narrativa de positividade — ainda que sua negação dos momentos ruins demonstre um problema de amadurecimento.
Dias perfeitos acompanha a história de Hirayama (Koji Yakusho), um homem modesto de meia-idade que passa seus dias trabalhando como zelador e limpando banheiros em Tóquio. Sua vida se resume às suas três grandes paixões: músicas, livros e as fotografias que tira dos lugares pelos quais passa. À medida que a vida de Hirayama avança, encontros inesperados começam a surgir, revelando um passado sombrio e menos metódico.
Grande parte da simplicidade narrada pela história é refletida e sustentada pela decupagem. Wim Wenders, que, na década de 1980, assinou Paris, Texas, opta por uma estética parecida com o estilo dos seus grandes trabalhos: o ritmo é lento e seu caráter é contemplativo. Essa monotonicidade é um reflexo direto da proposta de exaltação dos detalhes. Não são raros os instantes que Hirayama passa vários minutos de tela apenas olhando os contornos de árvores e da arquitetura de Tóquio. Essa adoção é uma manipulação direta da perspectiva perante o aparelho cinematográfico: ela não apenas demonstra que passividade voyeurista é também um visionamento ativo, como direciona a atenção para o que realmente importa.
Esse redirecionamento do ponto de vista e do foco de atenção dos elementos narrativos é construído quase que exclusivamente pela configuração dos planos e a forma pela qual eles atuam no papel de ferramenta simbólica. Dentro do apartamento de Hirayama, a câmera baixa — imitando a tendência fundada por Kurosawa no clássico cinema japonês — junto de uma correção de cor quase nula, enquadramentos próximos do rosto do personagem e uma proporção de tela mais apertada representa não apenas a compressão espacial do apertado espaço que o homem vive, mas também o sufoco de sua profissão no hierarquia japonesa. Embora seus amigos lhe deem um copo de bebida diariamente, em agradecimento pelos seus serviços comunitários, são várias as pessoas que o tratam com desdém. Em certa cena, Hirayama ajuda uma criança perdida e, quando a mãe aparece, a primeira coisa que ela faz é limpar as mãos que haviam tocado o “homem sujo”. Em resposta, o homem sorri pelo filho ter se reencontrado com sua mãe.
Entretanto, a grande estrela do filme acaba sendo Hirayama — e, por consequência, Yakusho, que interpreta essa personagem de forma impecável. O homem, apesar de simples e ter seu gosto bem fundamentado, ganha profundidade por suas manias. Seu esforço no seu trabalho é grande e beira o perfeccionismo: ele observa debaixo de um mictório para verificar se todos os lados do objeto estão realmente limpos. Todos os dias, antes de sair para seu emprego, ele compra um refrigerante e passa grande parte da rotina em silêncio — por economizar palavras, ele assume uma perspectiva próxima de quem assiste o longa. Nos finais de semana, ele vê todas as fotos que tirou com sua câmera analógica e confere aquelas que ficaram boas. Dessa forma, a falta de ação é vista mais como uma dádiva do que um agente do tédio.
Porém, esse caminho de positivismo extremo de Dias perfeitos parece não contemplar um certo amadurecimento. Em outras palavras, há uma sensação ampla de negação de emoções ruins. Embora essa seja uma máxima desejada, constantemente contornar sentimentos negativos e não se permitir senti-los acaba sendo mais destrutivo e raramente provoca mudanças positivas. Claro que Hirayama teve sua cota de dias tempestuosos e, por fim, escolheu o que aparenta ser um lado mais leve. Dentro do filme, porém, isso nem sempre fica claro: em uma cena, o ex-marido de uma amiga de Hirayama confessa para o protagonista que foi diagnosticado com câncer terminal. Segundos depois, ambos começam a brincar com suas sombras. O filme não permite que haja um peso apropriado, logo, o que vem depois parece não ser tão recompensador quanto poderia ser.
Mesmo se passando em Tóquio, Dias perfeitos vislumbra uma cidade relativamente calma. Essa inversão de uma concepção popular revela um filme divergente do comum e que prega encontrar perfeição naquilo que está ao seu alcance. Porém, por mais que a vida possa (e deva) ser bonita, precisamos entender que ela não é feita apenas de dias perfeitos, mas, sim, de momentos ruins também. Saber disso é outro tesouro, não apenas para lidar com eles, mas para valorizar ainda mais o que se há de bom.