Crítica: Blade Runner: O caçador de androides (1982), de Ridley Scott
Blade Runner: O caçador de androides (1982) foi um dos únicos filmes que usou do seu ontem para andar para frente.
Os filmes já estão entre nós há tanto tempo que chegamos ao ponto em que os futuros utópicos — ou distópicos — de diversas obras já ficaram cristalizados no nosso passado. Quem se lembra de quando, em 2015, todos pararam para comparar nossa atualidade com as previsões falhas de De volta para o futuro 2 (1989)? Para o bem ou para o mal, grande parte das premonições que pintaram as telas do cinema nunca chegou a ver a luz do dia. Esses presságios foram turvos apenas, no entanto, pela incapacidade das pessoas de antes de entenderem que cinquenta anos não é muito tempo e por estarem focadas sempre em pensar no futuro sem contestar seu passado. Blade Runner: O caçador de androides (1982), por sua vez, foi um dos únicos filmes que usou do seu ontem para andar para frente.
O longa se passa em 2019, numa decadente e futurista cidade de Los Angeles. Neste universo, seres humanos artificiais, chamados replicantes, são criados e usados para fazer o trabalho sujo dos humanos. Depois de um motim, os replicantes são banidos na Terra e usados apenas para trabalhos perigosos, servis e de prazer nas colônias da Terra. Aqueles que desafiam o banimento e retornam são caçados e "aposentados" pelos operativos especiais da polícia conhecidos como "caçadores de replicantes". No filme, um grupo de androides escapou e está escondendo-se em Los Angeles e o aposentado caçador Rick Deckard (Harrison Ford) é recrutado para realizar mais um trabalho: caçar os fugitivos.
Por mais que Blade Runner tenha sido recebido de forma mista nos anos 1980, são vários os seus êxitos que permitem taxá-lo como clássico. Para começar, seu estudo de estilo e gênero é um dos grandes motivos que fizeram que seus vislumbres dos anos 2010 fossem mais concretos do que a maioria. Não precisa de muito esforço, por exemplo, para perceber as influências dos filmes noir dos anos 1940 na forma pela qual Ridley Scott passeia por Los Angeles. Por definição, filme noir é uma obra que se apoia em cima de uma iluminação mínima, enquadramento claustrofóbico e contraste nas sombras, bem como sempre há uma mulher fatal que tem intenções ambíguas com um herói questionável. Em Blade Runner, tudo é sombrio e sem esperança e todo canto da cidade parece ser consumido pela escuridão — mesmo com os prédios que contêm uma quantidade absurda de telões de propaganda. Rachael (Sean Young) é uma replicante que deve ser morta, mas que acaba seduzindo o personagem de Ford.
Essa consciência e embasamento estético permitem com que a ficção científica de Scott seja além de um pesadelo onírico sobre algo que poderia acontecer. Naquela época, Hollywood tinha acabado de passar pelos seus dias de New Wave, que subverteu as lógicas do cinema clássico, apresentando narrativa puramente de incômodo. Em outras palavras, eram filmes que mostravam o lado sujo dos Estados Unidos. Embora Blade Runner esteja mais inserido dentro dos primeiros anos dos blockbusters, sua principal fonte vem da Nova Hollywood. Los Angeles é suja e Deckard vaga pelas ruas como se estivesse em um dos primeiros longas de Martin Scorsese. No fundo, uma trilha de jazz sensual preenche o espaço, adotando o jogo de uma música elitizada como plano de fundo para uma sociedade decadente.
Essa forte bagagem resulta numa potencialização de uma ficção científica que sabe para onde está indo porque sabe o que tem no seu passado. Nesse sentido, o universo distópico de Blade Runner, embora apresente alguns elementos que ainda são delírios, parece mais bem alinhado com o desenrolar que se deu nos últimos quarenta e poucos anos. Partindo do conceito geral, a ficção científica depende de um deslocamento espacial e temporal no qual uma evolução tecnológica muito rápida invoca um paradoxo da destruição humana por meio da tecnologia que surgiu, inicialmente, para nos ajudar. Blade Runner é uma ficção para os anos 1980, ao passo que para hoje é uma realidade: a corrupção da mentalidade humana durante a ascensão das “inteligências artificiais” em meio de um planeta que se destrói.
Isso tudo culmina na discussão principal do filme: a significância da humanidade. Essa é talvez a premonição que será mais certeira ao longo dos anos, enquanto é também a mais assustadora. No mundo em que tudo é artificial, os humanos lidam com sua própria falta de alma: em todas as brigas e perseguições violentas na rua, todos por ali ignoraram qualquer movimento que possa te atrair para o problema. Essa carência de espírito implica na quebra da substância da humanidade, gerando humanos fracos que fingem ser fortes. Com isso, Blade Runner conta com cenas em que uma coleção de brinquedos em forma de pessoas demonstra a plasticidade de seus interiores. No mais, quando Deckard luta com Roy (Rutger Hauer), uma epifania surge: as máquinas quebram o religioso ciclo da vida não por serem sintéticas, mas por serem destinadas a morrer antes de seu país. Como instinto, seu único desejo é sobreviver por mais alguns anos, ainda que sua vida seja destinada ao sofrimento — assim como nós.
O êxito de Blade Runner não vem apenas de sua construção metafórica, mas também de sua produção. Os efeitos especiais, até hoje, são impressionantes. Os grandes telões nos prédios, mostrando uma mulher asiática, são emblemáticos, ao passo que a atenção para os detalhes é algo feito com capricho: quando chove, os guarda-chuvas têm pequenas fitas de LED que agem como um guia de luz no meio do breu. Por outro lado, embora a direção de Scott pinte quadros gregos oníricos em diversos instantes, sua opção por capturar tudo de forma mais sutil — com planos lentos que parecem interessados em capturar ações pelo que elas são e que não visa manipular elas para melhores resultados — pode ser tediosa.
Existe uma cena do filme que Roy enfia um prego na palma de sua mão para matar Deckard. Isso simboliza o possível nascimento de um novo Jesus: um robô morreu para que todos os outros triunfassem e fossem salvos. No entanto, Scott gosta mais de mostrar o acontecimento do que suas consequências. Muito mais do que Los Angeles em 2019, somos nós que precisamos de um novo salvador.