A Substância (2024), de Coralie Fargeat
Coralie Fargeat leva o body horror ao extremo em A Substância (2024), trabalhando com um desconforto visual alinhado a críticas ácidas no que pode ser o melhor filme do ano.
O que caracteriza que você é quem você diz ser? Talvez seja seu rosto, seu nome ou a maneira que você se comporta. O conceito de pessoalidade ainda é intricado, partindo desde as abordagens tradicionais, com foco na racionalidade e na individualidade, até às perspectivas contemporâneas, que enfatizam as dimensões relacional e espiritual. O corpo, em todo o caso, desempenha um papel crucial na formação da personalidade e da autoimagem de um indivíduo, desafiando também a noção de dualismo metafísico. Com isso, o corpo é a forma pela qual você materializa sua consciência e, por consequência, personalidade: ele é o principal canal de comunicação e expressão. Desse jeito, em algumas culturas, um caráter normativo está condicionado ao “corpo perfeito”. No entanto, o que acontece quando seu corpo não é mais suficiente para demonstrar como você se sente internamente? O que fazer quando seu exterior não é mais aceito e você é descartado apenas por ser uma vítima do envelhecimento natural? Bom, você pode sempre achar uma nova carcaça.
Em A Substância (2024), a diretora francesa Coralie Fargeat arquiteta responder essas questões através um filme de body horror violentamente visceral. Na história — que parece incrementar a narrativa de Reality+, curta da diretora lançado há dez anos —, seguimos Elisabeth Sparkle (Demi Moore), uma celebridade do mundo fitness em declínio, que enfrenta o cancelamento do seu programa na televisão e demissão devido a sua aparência fora de forma. Desesperada por um novo começo e aprovação, ela decide experimentar uma droga do mercado clandestino que promete duplicar as células, criando temporariamente uma versão mais jovem e aprimorada de si. Por causa disso, a consciência da atriz se vê dividida entre duas versões, Elisabeth e Sue (Margaret Qualley), que devem coexistir: cada uma pode viver por sete dias, enquanto a outra é mantida desacordada e alimentada por sondas. No entanto, ao passo que Sue desfruta de uma vida de sucesso e elegância, Elisabeth paga pelos luxos da outra metade, entrando em uma luta por sua existência contra si mesma.
A Substância tem um dos enredos mais criativos do horror recente, assumindo uma perspectiva quase vanguardista. Quando Elisabeth contrata o serviço da Substance, ela recebe um cartão e um endereço. Chegando no local, em um beco escondido, ela encontra uma caixa com seringas e instruções. Primeiro, ela deve injetar um líquido, o que duplica as células e faz sua nova versão nascer dentro dela e sair por um corte em suas costas. Nisso, ela deve alimentar a variante desacordada via sondas e usar da sua medula para se estabilizar, antes de trocar de lugar com ela em sete dias por meio de uma transfusão de sangue. Embora dois corpos e a versão nova se apresente como Sue, a consciência é a mesma. Com isso, o contraste se estabelece: enquanto Sue vive uma vida jovem e vibrante, o mundo de Beth torna-se depressivo. O sucesso da juventude faz Sue abusar do corpo de sua outra versão para poder viver mais dias: ela começa drenar mais medula do corpo de Beth, o que faz com ela envelheça rápido. Horas extras como Sue se tornam meses, transformando a jovem em uma sanguessuga. Nisso, uma consciência se divide em duas dentro de uma só perante as experiências: Elisabeth odeia o que ela mesma (Sue) faria pela fama, enquanto Sue odeia seu verdadeiro eu (Elisabeth).
Essa narrativa é emblemática, de fato, mas, antes de qualquer outra simbologia, Substância é existencialista. Em um primeiro nível, há uma discussão sobre o que define uma identidade: físico ou personalidade? Por consequência, isso caracteriza a existência e a vida? No caso de Elisabeth, que se fragmenta devido a sua fisicalidade, o corpo é o fator mais essencial para sua existência — afinal, ela baseou sua carreira nisso. Como consequência, Substância apresenta uma forte adoração ao corpo “perfeito”: quando Sue estreia seu programa de malhação na televisão, seu corpo é objetificado ao extremo, ao passo que ela mesma sente prazer em ter aquela forma pela maneira que ela se toca e age. Nesse sentido, a fetichização do corpo ocorre interna e externamente, em múltiplas esferas: sua conquista não é financeira, mas te proporciona riqueza e capital pela comercialização. Isso propõe algo mais complicado: vale a pena você sentir poder (juventude) mesmo que você (Elisabeth) deixe de ser você mesmo (Sue)? Depende de você.
Em paralelo, outro ponto fundamental em Substância são seus signos visuais, que são esteticamente incômodos, mas metaforicamente orientadores. Fargeat fez um uso inteligente de lentes grande angulares, adotando distorções para construção de desconforto, invasão do espaço pessoal do espectador e deturpação das noções de ambiente. Nisso, seu símbolo dialoga com a ideia de Beth e Sue: nem tudo é o que parece ser. Para mais, todos os movimentos dentro da mise-en-scène parecem calculados: no começo, quando ela anda por um corredor com cartazes de seus trabalhos na televisão, as pessoas a cumprimentam pelo seu aniversário. Tanto a grande quantidade de pôsteres na parede quanto sua longa caminhada demonstram uma vida consolidada e experiente. Um pouco antes, isso é demonstrado de outra maneira, quando Coralie captura a estrela na calçada da fama de Sparkle ao longo dos anos, do estrelato até as rachaduras aparecerem e as pessoas nem olharem para seu nome. Por conseguinte, são raros os instantes não incômodos em Substância.
Porém, não podemos falar sobre desconforto em Substância sem destacar a presença unânime do body horror. No começo, Fargeat desponta leve na inquietação, com planos próximos de agulhas perfurando pele, veias e coluna — sua apresentação alongada aumenta a aflição, porém é leve comparada com o que vem em seguida. Quando Sue começa a roubar tempo de vida de Elisabeth, não fazendo a troca de corpos e continuando a extrair a medula, o corpo de Beth começa a envelhecer. No primeiro momento, algumas horas geram um dedo podre, mas quando Sue começa a roubar semanas, a perna de Beth calcifica e, posteriormente, seu corpo fica todo deformado. O pior, no entanto, fica no final: Beth, após meses desacordada, decide matar Sue, mas se arrepende e revive a jovem. Sue, enfurecida, assassina Beth e vai para seu programa de final de ano, onde seu corpo começa a se desfazer: unhas, dentes e orelhas começam a cair. No desespero, Sue usa o líquido de clonagem mais uma vez, dando vida a uma nova variante amórfica: ela é apenas uma massa de pele com rostos, orelhas e mãos espalhadas por todos os lugares. No palco, quando ela é exposta, ela é violentada, provocando uma chuva de sangue na plateia. O fato de tudo ser efeito prático apenas deixa tudo ainda mais visceral e aterrorizante.
Tudo isso para concretizar uma moral próxima de nós: uma luta contra a idealização do belo. Elisabeth, por muito tempo, foi um ícone de beleza e fez sua vida depender disso. Quando ela vira vítima desse sistema, ela ainda assim não consegue olhar carinhosamente para si: há uma cena em que ela se olha no espelho, com olhar de chateação. No entanto, ao criar Sue e agir da forma que fez, no papel de sua forma jovem, ela apenas reforça esse mercado que a descartou. Mais tarde, quando diverge de Sue, Beth consegue entender que a jovem está se vendendo e tenta ir contra o padrão: ela decide sair com um amigo da escola, na tentativa de se valorizar, mas não consegue sair de casa por não estar confortável. No final, a versão extremamente deformada de Sue, Elisasue, aparece no programa de Ano Novo usando uma máscara de Sparkle. Enquanto mascarada, ela é bem tratada, mas é violentada quando mostra sua verdadeira forma. Nisso, Substância afirma que, hoje, para ser amada, você só precisa ter um rosto bonito e fazer de tudo para ir contra o envelhecimento — até mesmo deixar de ser você.
Sinto que eu ainda tenho muito que posso falar sobre Substância, mas sem espaço suficiente. Poderia mencionar o grande número de referências — Frankenstein (1931), Monstros (1932), O Iluminado (1980), Cidade dos Sonhos (2001), A Morte do Demônio (2013) e David Cronenberg — e o quão fantástica Demi Moore e Margaret Qualley estão nessa obra. Porém, escolho encerrar dessa forma: quando Elisasue mostra seu verdadeiro corpo no palco, ela é xingada e violentada pelo público. Eles esperavam uma jovem bonita e vibrante, uma nova queridinha da América, mas receberam um monstro. Longe de ser um monstro e sim apenas uma representação do real, Elisabeth Sparkle, talvez, teria recebido a mesma rejeição.